"Sempre me encantava, quando criança, ver embarcações desaparecerem na linha do horizonte, até onde meus olhos podiam enxergar...
Acreditava que elas sumiam para sempre...via como criança, com beleza e imaginação e
pensava que ali era o fim... E ficava lá, à deriva do mundo, olhando o diminuir dos barcos.
O tempo passou, eu cresci e entendi que o diminuir não era de verdade, que
no ponto onde eles sumiam, não sumiam de fato e tudo que eu via era
pelo olhar bonito e puro de quem ainda não aprendera sobre certos limites.
O tempo passou, eu cresci e descobri que eles, os barcos, diminuem para nossos olhos à medida em que crescem para outros olhos; que somem para nós,
para surgir para alguém que, em algum lugar, divide conosco o ato mágico de velar o mar.
Tudo isso veio à memória, porque estava lendo Clarice Pínkola, e ela fala
no ciclo da vida-morte-vida, que morremos e nascemos muitas vezes,
às vezes num mesmo dia, numa mesma semana, num mesmo mês, na mesma vida.
Fala que morte não é prenúncio do fim, mas de um início, e mais: diz que é nossa a tarefa de matar, matar algo para permitir que uma nova vida venha.
Matar dentro de nós. Questão de espaço. Faz sentido.
É que não comportamos tudo. Não há espaço para tanto sentir. E quando
insistimos em manter vivos certos sentimentos através de respiração
artificial, não há espaço para nascer nada de novo.
Então temos que abrir o baú e matar dentro de nós mágoas, dores velhas
ou novas, noções empoeiradas, vícios humanos, escolhas erradas, ferimentos mantidos sangrando, decepções, conceitos obliterados, amores infelizes,imagens amareladas,
relacionamentos passados, tristezas, amarguras, pessoas... E por aí vai ...
A lista é individual, cada um tem a sua. O que é comum a todos é a responsabilidade de, interiormente, exterminar, dar fim ao que é ruim para que algo
novo e bom nasça.
É fácil? Não mesmo.
A aparência de qualquer morte é sempre feia e matar internamente não é simples impulso, é decisão pensada, medida e avaliada.
É fato que temos sempre a opção de continuar achando que os barcos do sentir seguem
seu curso e, chegada a hora, ultrapassando a linha do horizonte do
coração, morrerão por si só. Mas, na verdade isso significa manter no nosso âmago tudo até
o lixo - que amealhamos, em arquivos abarrotados que crescem e crescem
embotando a vida, e nos enganarmos dizendo: são arquivos mortos!
É isso ou então encaramos a megera e aprendemos a matar.
O que deverá morrer em mim hoje? Essa é a pergunta que ela sugere para começar.
E eu , com a experiência de observadora criança, humildemente acrescento: não
basta escolher dentro de nós o que vai morrer, e em seguida matar.
É preciso enterrar. Porque às vezes o que nos fez mal já está pra lá de morto, mas mantemos mumificado dentro de nós, para usarmos como referencial, para não esquecermos do que sofremos
e não cairmos de novo nas mesmas armadilhas.
Outro engano.
Nada é igual nunca e dores embalsamadas não servem como exemplo, nem protegem, só paralisam.
Não há fórmula.
Não há bulas.
A única maneira de viver é permitir que a vida nasça e morra e de novo nasça, tantas
vezes quanto forem necessárias ...
Portanto, para abrir os espaços é necessário nos fazermos perguntas. E uma
vez identificado o que não é bom e não nos serve mais, devemos dar-lhe
a morte.
Em seguida enterremos nosso morto, choremos um pouco, e, cumprido o ritual, vistamo-nos
com esmero para esperar... ...Algo bom estará nascendo.
E agora?
Agora o mundo real chama, a vida grita, o tempo urge e eu, buscando palavras para encerrar a crônica, relembro que o fim é uma questão relativa, mas
necessária.
E olhando da janela para o horizonte que parece ser o fim
mas que é também o princípio, finalizo para poder re-começar! "